quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Feliz Ano Novo!


Mais um ano no calendário ocidental está terminando, mas um ano gregoriano fica no passado virando História, deixando histórias e semeando histórias que vão crescer, florescer e nascer pelo ano que está chegando.
Imagens que não esqueceremos, fatos, heróis e vilões que farão parte da memória.
Assim são todos os fins de anos, e o que fica é o desejo de começar de novo, a esperança de novos sonhos e conquistas, por isso a história nunca acaba.

Feliz 2010! Para todos que fazemos história todos os dias.


Henrique Rodrigues Soares

domingo, 6 de dezembro de 2009

História




















Discussões e entendimentos
Dinastias e invasões
Conquistas e falecimentos
Heróis e convicções


Eras e cronologias
Quimeras e luta po poder
Traições e picardias
Honrarias ao que morrer


As datas, os marcos
O que me diz a memória
Sobre os fortes e os fracos
A leitura da História.


Henrique Rodrigues Soares O que é a Verdade?

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A Obra



As cidades de Tristes trópicos

RESUMO: Este artigo repassa, em Tristes trópicos, as observações de Lévi-Strauss sobre o tema da cidade, desde as primeiras impressões quando de sua chegada ao Brasil, passando pela "etnografia dos domingos" na capital paulistana, o surgimento das novas cidades no norte do Paraná, até, finalmente, as multidões em espaços urbanos da Índia, pólo que o leva a estabelecer comparações com as formas características do processo de urbanização no Novo Mundo. Tomando sua leitura como um exercício de análise, o artigo conclui refletindo sobre a oportunidade de contar com categorias que permitam captar, a partir da antropologia, a dinâmica urbana contemporânea.
Quando se entra em contato com a obra de Lévi-Strauss através de Tristes trópicos, ainda têm uma especial sonoridade para ouvidos nativos as referências feitas a espaços como a rua Florêncio de Abreu, o bairro de Perdizes e o Pacaembu, a avenida São João, o Vale do Anhangabaú, a avenida Paulista e muitos outros, tão familiares e conhecidos dos moradores da cidade de São Paulo. Tais referências, mas principalmente as observações sobre a presença de migrantes estrangeiros nos arredores da cidade, a dinâmica de mercados populares com seu artesanato e algumas festas tradicionais fazem parte do que o próprio Lévi-Strauss então chamou de "etnografia dos domingos". Conforme depoimento prestado anos mais tarde a Didier Eribon, lembra que suas expedições às tribos indígenas tiveram início

"a partir do primeiro ano letivo. Em vez de voltar para a França, minha mulher e eu fomos para o Mato Grosso, para as aldeias cadiveu e bororo. Mas eu já tinha começado a fazer etnologia com os meus alunos: sobre a cidade de São Paulo e sobre o folclore dos arredores, do qual minha mulher se ocupava mais especificamente". (Lévi-Strauss & Eribon, 1990: 32)

No entanto, logo após aquelas observações iniciais sobre a cidade, sua dinâmica e tipos característicos, entremeadas por outras tantas frases de efeito nem sempre lisonjeiras, mas continuamente lembradas – do tipo "as cidades do Novo Mundo passam diretamente à decrepitude sem se deterem no antigo" –, o livro logo encontra e assume seu verdadeiro filão, proporcionado pelo primeiro contato do jovem pesquisador com as sociedades indígenas. No meio do caminho, entretanto, Lévi-Strauss deu uma parada para contemplar os efeitos da urbanização no interior paulista, esboçar algumas regras subjacentes ao processo de implantação de novas cidades no norte do Paraná e finalmente, já do outro lado do mundo, estabelecer comparações com cidades, mercados, tipos humanos e multidões da Índia e Paquistão.

Ainda que tais notas não tenham vindo a fundar uma linha de reflexão mais sistemática sobre o tema, diferentemente do que ocorreu com seus insights a respeito dos Cadiveo, Bororo e Nhambiquara, merecem destaque pela agudeza das percepções, pela trama dos contrapontos, pelo alcance do olhar; trata-se de fino exercício que, fossem outras as circunstâncias, talvez tivesse dado início a alguma fecunda linhagem de estudos urbanos. Mas, como afirmou ao jornalista Ulderico Munzi, do Corriere della Sera, em 1993, " eu fiz uma escolha, a de interessar-me por coisas longínquas, no espaço e no tempo".

I

O exercício começa com uma rápida análise do processo de expansão da fronteira no interior do Estado de São Paulo, seguindo a trilha das transformações econômicas e formas de ocupação: o olhar atento identifica as alterações na toponímia, as mudanças na importância e função de povoados (pousos, boca do sertão) e de tipos de articulação viária – os portos de lenha, registros, estradas francas, estradas muladas e boiadas.

Mas é o espetáculo do surgimento de novas cidades, a partir do nada, no coração da floresta, o que mais o impressiona. Aquele tom blasé das primeiras observações, certamente tributário de um olhar ainda acostumado à vetustez de conjuntos arquitetônicos de dez séculos, e que por isso vê as cidades do Novo Mundo com cara de acampamento ou montagem provisória, cede lugar à busca de princípios explicativos para um fenômeno mais radical, flagrado em seu nascedouro.

No norte do Paraná o processo de colonização, à época da estada de Lévi-Strauss, estava multiplicando cidades ao longo de um tronco central rodo-ferroviário: a partir de clareiras rasgadas em meio à selva exuberante, já haviam surgido Londrina, depois Rolândia, Arapongas e outras mais. No início eram apenas umas poucas casas de madeira, algumas de troncos falquejados, seguindo técnicas construtivas dos imigrantes – principalmente da Europa Central – embasbacados com a fertilidade da terra roxa que as derrubadas iam pondo à mostra e à sua disposição. Mas não era uma ocupação desordenada: desde o primeiro momento pautava-se por alguns princípios simples, geométricos, aparentemente neutros.

Misteriosos elementos, diz Lévi-Strauss, responsáveis por esses quadriláteros onde as ruas são todas iguais, em ângulo reto; no entanto, algumas eram centrais, outras periféricas, estas perpendiculares à linha ferroviária ou à estrada, aquelas, paralelas. Por sobre a grade das combinações possíveis, distribuíam-se as conhecidas funções urbanas do comércio, dos negócios, da moradia e dos serviços públicos: umas situavam-se preferencialmente no sentido do tráfego enquanto outras procuravam as transversais. Um segundo princípio marca as linhas da ordem e da desordem e rege a distribuição da abundância e da carência: é o que se segue à direção leste/oeste. "Há muito deixamos de adorar o sol", afirma ele, "mas a persistência dessa orientação reveste-se de atualidade". Se não explica a variabilidade dos comportamentos individuais, termina produzindo, por decantação, uma unidade maior:

"a vida urbana apresenta um estranho contraste. Embora represente a forma mais completa e requintada da civilização, em virtude da concentração humana excepcional que realiza em espaço reduzido e da duração de seu ciclo, precipita no seu cadinho atitudes inconscientes, cada uma delas infinitesimal mas que, devido ao número de indivíduos que as manifestam do mesmo modo e em grau idêntico, se tornam capazes de engendrar grandes efeitos. Como exemplos, o crescimento das cidades de leste para oeste e a polarização do luxo e da miséria segundo este eixo, que se torna incompreensível se não reconhecermos esse privilégio – ou essa servidão – das cidades que consiste, à maneira dum microscópio e, graças ao aumento que lhe é peculiar, em fazer surgir na lâmina da consciência coletiva o borbulhar microbiano das nossas ancestrais mas sempre vivas superstições. Tratar-se-á, de resto, realmente, de superstições? (Lévi-Strauss, 1981: 116)

Eis aí, em concisa enunciação, uma verdadeira fórmula de cidade. Antecipando argumentos de "O Pensamento Selvagem", Lévi-Strauss sustenta que o espaço possui seus próprios valores, assim como os sons e os perfumes têm cores e os sentimentos um peso:

"Esta procura de correspondência não é um jogo de poeta nem mistificação, mas (... ) oferece para o cientista o terreno mais novo e aquele cuja exploração lhe pode ainda trazer ricas descobertas. (...) os mitos e os símbolos do selvagem devem surgir aos nossos olhos, senão como uma forma superior de conhecimento, pelo menos como a mais fundamental, a única verdadeiramente comum, constituindo o pensamento científico simplesmente a ponta mais acerada da mesma: mais penetrante, sem dúvida, porque aguçada como se fosse amolada na pedra dos fatos mas à custa duma perda de substância, dependendo a sua eficácia do poder de penetrar suficientemente fundo para que o corpo da ferramenta siga complemente a ponta". (Lévi-Strauss, 1981: 116-17)

A forma da aldeia bororo e sua íntima relação com a organização social (que seriam mostradas páginas adiante); a mandala que prefigura em desenho o traçado da cidade e determina sua implantação concreta; o gesto do centurião romano com sua groma, traçando no solo os cardines e decumani que fundam mais uma urbs¸ após a devida consulta aos augures; e finalmente o projetista inclinado sobre sua prancheta são algumas imagens que até podem ser dispostas numa linha diacrônica mas que pertencem a um mesmo conjunto paradigmático.

"Não é portanto apenas de maneira metafórica que é possível comparar -- como se fez muitas vezes -- uma cidade a uma sinfonia ou a um poema; são objetos de natureza idêntica. A cidade, talvez mais preciosa ainda, situa-se na confluência da natureza e do artifício. Congregação de animais que encerram a sua história biológica nos seus limites, modelando-a ao mesmo tempo com todas as suas intenções de seres pensantes, a cidade provém simultaneamente da procriação biológica, da evolução orgânica e da criação estética. É ao mesmo tempo objeto de natureza e sujeito de cultura; indivíduo e grupo; vivida e sonhada; a coisa humana por excelência". (Lévi-Strauss, 1981: 117)

A visita a Goiânia em 1937 e as impressões do empreendimento, em especial da única edificação que então sobressaía na planície, o grande e desgracioso hotel, fornecem-lhe o gancho para a segunda parte do exercício. A bordo de um tapete voador, termo que emprega como intertítulo em Tristes trópicos, Lévi-Strauss deixa o planalto central brasileiro em direção à Índia e ao Paquistão. A comparação agora será numa perspectiva macro, entre unidades maiores, afastadas no tempo e no espaço. A visão das ruínas das antigas cidades de Mohenjo-Daro e Harappa, revelando o plano urbanístico em retícula, evoca similares modernos:

"Apraz-nos imaginar que no termo de 4 a 5 mil anos de história, um ciclo foi concluído; que a civilização urbana, industrial, burguesa, inaugurada pelas cidades dos Indus, não diferia muito, na sua inspiração mais profunda, dessa que estava destinada, após uma longa involução na crisálida européia, a atingir a plenitude do outro lado do Atlântico. Quando ainda era jovem, o mundo mais Antigo esboçava já o rosto do Novo". (Lévi-Strauss, 1981: 124)

Mas é o impacto das multidões que lhe oferece o contraste mais marcante e novas pistas para comparação: nas ruas apinhadas de Calcutá o séquito de serviçais e suas ofertas, a procissão de pedintes e suas súplicas sustentam o ininterrupto e deprimente espetáculo de uma sub–humanidade. A cidade, qualificada poucas linhas acima como "forma mais completa e requintada da civilização", aqui emerge manchada pela imundície e degradação, produzindo no antropólogo não mais o estranhamento esperado e metodologicamente controlado, mas o espanto e até o constrangimento.

"O europeu que vive na América tropical tem problemas. Observa as relações originais existentes entre o homem e o meio geográfico; e as próprias formas de vida humana oferecem-lhe, sem cessar, temas de reflexão. Mas as relações entre as pessoas não revestem formas novas; são da mesma natureza daquelas que sempre o rodearam. Pelo contrário, na Ásia meridional, parece-lhe estar além ou aquém daquilo que o homem tem direito de exigir do mundo ou do homem. A vida cotidiana parece ser um permanente repúdio da noção de relações humanas (:128)."

É desse afastamento mais extremo, contudo, que vai emergir um novo significado e é aí que vai descobrir uma inusitada manifestação de humanidade. A imagem do artesão, entretido com umas poucas ferramentas e escasso material, a exercer na própria rua o ofício de onde retira a parca subsistência para si e para os seus, fá-lo exclamar: "E, todavia, são precisas tão poucas coisas, aqui, para criar a humanidade! Pouco espaço, pouca comida, poucos utensílios, pouca alegria".

Paradoxalmente, parece haver muita alma... Alma que uma parte do Ocidente cansada do consumo e saturada pela abundância vem procurar nas palavras e exemplos de esquálidos bikhus, gurus semi despidos e toda espécie de renunciadores, na recente onda de retorno a formas de espiritualidade há muito esquecidas neste outro lado do mundo.

O exercício finalmente chega a seu termo. Lévi-Strauss considera que o problema levantado pela confrontação entre a Ásia e a América tropicais continua sendo o da multiplicação humana num espaço limitado. Diante da situação de sociedades que se tornam demasiado numerosas, alerta para um tipo de perigo: a sedução de uma saída simplista, aquela que consiste em recusar qualidade humana a uma parte da espécie.

"Aquilo que me assusta na Ásia é a imagem do nosso futuro, do qual ela constitui uma antecipação", conclui, numa sombria antevisão. Sua última imagem, contudo, é da América indígena e seu fugidio reflexo "de uma era em que a espécie se encontrava à medida do seu universo e em que se verificava permanentemente uma relação adequada entre o exercício da liberdade e os sinais desta" (Lévi-Strauss, 1981: 143).

RESUMO: Este artigo repassa, em Tristes trópicos, as observações de Lévi-Strauss sobre o tema da cidade, desde as primeiras impressões quando de sua chegada ao Brasil, passando pela "etnografia dos domingos" na capital paulistana, o surgimento das novas cidades no norte do Paraná, até, finalmente, as multidões em espaços urbanos da Índia, pólo que o leva a estabelecer comparações com as formas características do processo de urbanização no Novo Mundo. Tomando sua leitura como um exercício de análise, o artigo conclui refletindo sobre a oportunidade de contar com categorias que permitam captar, a partir da antropologia, a dinâmica urbana contemporânea.
Quando se entra em contato com a obra de Lévi-Strauss através de Tristes trópicos, ainda têm uma especial sonoridade para ouvidos nativos as referências feitas a espaços como a rua Florêncio de Abreu, o bairro de Perdizes e o Pacaembu, a avenida São João, o Vale do Anhangabaú, a avenida Paulista e muitos outros, tão familiares e conhecidos dos moradores da cidade de São Paulo. Tais referências, mas principalmente as observações sobre a presença de migrantes estrangeiros nos arredores da cidade, a dinâmica de mercados populares com seu artesanato e algumas festas tradicionais fazem parte do que o próprio Lévi-Strauss então chamou de "etnografia dos domingos". Conforme depoimento prestado anos mais tarde a Didier Eribon, lembra que suas expedições às tribos indígenas tiveram início

"a partir do primeiro ano letivo. Em vez de voltar para a França, minha mulher e eu fomos para o Mato Grosso, para as aldeias cadiveu e bororo. Mas eu já tinha começado a fazer etnologia com os meus alunos: sobre a cidade de São Paulo e sobre o folclore dos arredores, do qual minha mulher se ocupava mais especificamente". (Lévi-Strauss & Eribon, 1990: 32)

No entanto, logo após aquelas observações iniciais sobre a cidade, sua dinâmica e tipos característicos, entremeadas por outras tantas frases de efeito nem sempre lisonjeiras, mas continuamente lembradas – do tipo "as cidades do Novo Mundo passam diretamente à decrepitude sem se deterem no antigo" –, o livro logo encontra e assume seu verdadeiro filão, proporcionado pelo primeiro contato do jovem pesquisador com as sociedades indígenas. No meio do caminho, entretanto, Lévi-Strauss deu uma parada para contemplar os efeitos da urbanização no interior paulista, esboçar algumas regras subjacentes ao processo de implantação de novas cidades no norte do Paraná e finalmente, já do outro lado do mundo, estabelecer comparações com cidades, mercados, tipos humanos e multidões da Índia e Paquistão.

Ainda que tais notas não tenham vindo a fundar uma linha de reflexão mais sistemática sobre o tema, diferentemente do que ocorreu com seus insights a respeito dos Cadiveo, Bororo e Nhambiquara, merecem destaque pela agudeza das percepções, pela trama dos contrapontos, pelo alcance do olhar; trata-se de fino exercício que, fossem outras as circunstâncias, talvez tivesse dado início a alguma fecunda linhagem de estudos urbanos. Mas, como afirmou ao jornalista Ulderico Munzi, do Corriere della Sera, em 1993, " eu fiz uma escolha, a de interessar-me por coisas longínquas, no espaço e no tempo".

I

O exercício começa com uma rápida análise do processo de expansão da fronteira no interior do Estado de São Paulo, seguindo a trilha das transformações econômicas e formas de ocupação: o olhar atento identifica as alterações na toponímia, as mudanças na importância e função de povoados (pousos, boca do sertão) e de tipos de articulação viária – os portos de lenha, registros, estradas francas, estradas muladas e boiadas.

Mas é o espetáculo do surgimento de novas cidades, a partir do nada, no coração da floresta, o que mais o impressiona. Aquele tom blasé das primeiras observações, certamente tributário de um olhar ainda acostumado à vetustez de conjuntos arquitetônicos de dez séculos, e que por isso vê as cidades do Novo Mundo com cara de acampamento ou montagem provisória, cede lugar à busca de princípios explicativos para um fenômeno mais radical, flagrado em seu nascedouro.

No norte do Paraná o processo de colonização, à época da estada de Lévi-Strauss, estava multiplicando cidades ao longo de um tronco central rodo-ferroviário: a partir de clareiras rasgadas em meio à selva exuberante, já haviam surgido Londrina, depois Rolândia, Arapongas e outras mais. No início eram apenas umas poucas casas de madeira, algumas de troncos falquejados, seguindo técnicas construtivas dos imigrantes – principalmente da Europa Central – embasbacados com a fertilidade da terra roxa que as derrubadas iam pondo à mostra e à sua disposição. Mas não era uma ocupação desordenada: desde o primeiro momento pautava-se por alguns princípios simples, geométricos, aparentemente neutros.

Misteriosos elementos, diz Lévi-Strauss, responsáveis por esses quadriláteros onde as ruas são todas iguais, em ângulo reto; no entanto, algumas eram centrais, outras periféricas, estas perpendiculares à linha ferroviária ou à estrada, aquelas, paralelas. Por sobre a grade das combinações possíveis, distribuíam-se as conhecidas funções urbanas do comércio, dos negócios, da moradia e dos serviços públicos: umas situavam-se preferencialmente no sentido do tráfego enquanto outras procuravam as transversais. Um segundo princípio marca as linhas da ordem e da desordem e rege a distribuição da abundância e da carência: é o que se segue à direção leste/oeste. "Há muito deixamos de adorar o sol", afirma ele, "mas a persistência dessa orientação reveste-se de atualidade". Se não explica a variabilidade dos comportamentos individuais, termina produzindo, por decantação, uma unidade maior:

"a vida urbana apresenta um estranho contraste. Embora represente a forma mais completa e requintada da civilização, em virtude da concentração humana excepcional que realiza em espaço reduzido e da duração de seu ciclo, precipita no seu cadinho atitudes inconscientes, cada uma delas infinitesimal mas que, devido ao número de indivíduos que as manifestam do mesmo modo e em grau idêntico, se tornam capazes de engendrar grandes efeitos. Como exemplos, o crescimento das cidades de leste para oeste e a polarização do luxo e da miséria segundo este eixo, que se torna incompreensível se não reconhecermos esse privilégio – ou essa servidão – das cidades que consiste, à maneira dum microscópio e, graças ao aumento que lhe é peculiar, em fazer surgir na lâmina da consciência coletiva o borbulhar microbiano das nossas ancestrais mas sempre vivas superstições. Tratar-se-á, de resto, realmente, de superstições? (Lévi-Strauss, 1981: 116)

Eis aí, em concisa enunciação, uma verdadeira fórmula de cidade. Antecipando argumentos de "O Pensamento Selvagem", Lévi-Strauss sustenta que o espaço possui seus próprios valores, assim como os sons e os perfumes têm cores e os sentimentos um peso:

"Esta procura de correspondência não é um jogo de poeta nem mistificação, mas (... ) oferece para o cientista o terreno mais novo e aquele cuja exploração lhe pode ainda trazer ricas descobertas. (...) os mitos e os símbolos do selvagem devem surgir aos nossos olhos, senão como uma forma superior de conhecimento, pelo menos como a mais fundamental, a única verdadeiramente comum, constituindo o pensamento científico simplesmente a ponta mais acerada da mesma: mais penetrante, sem dúvida, porque aguçada como se fosse amolada na pedra dos fatos mas à custa duma perda de substância, dependendo a sua eficácia do poder de penetrar suficientemente fundo para que o corpo da ferramenta siga complemente a ponta". (Lévi-Strauss, 1981: 116-17)

A forma da aldeia bororo e sua íntima relação com a organização social (que seriam mostradas páginas adiante); a mandala que prefigura em desenho o traçado da cidade e determina sua implantação concreta; o gesto do centurião romano com sua groma, traçando no solo os cardines e decumani que fundam mais uma urbs¸ após a devida consulta aos augures; e finalmente o projetista inclinado sobre sua prancheta são algumas imagens que até podem ser dispostas numa linha diacrônica mas que pertencem a um mesmo conjunto paradigmático.

"Não é portanto apenas de maneira metafórica que é possível comparar -- como se fez muitas vezes -- uma cidade a uma sinfonia ou a um poema; são objetos de natureza idêntica. A cidade, talvez mais preciosa ainda, situa-se na confluência da natureza e do artifício. Congregação de animais que encerram a sua história biológica nos seus limites, modelando-a ao mesmo tempo com todas as suas intenções de seres pensantes, a cidade provém simultaneamente da procriação biológica, da evolução orgânica e da criação estética. É ao mesmo tempo objeto de natureza e sujeito de cultura; indivíduo e grupo; vivida e sonhada; a coisa humana por excelência". (Lévi-Strauss, 1981: 117)

A visita a Goiânia em 1937 e as impressões do empreendimento, em especial da única edificação que então sobressaía na planície, o grande e desgracioso hotel, fornecem-lhe o gancho para a segunda parte do exercício. A bordo de um tapete voador, termo que emprega como intertítulo em Tristes trópicos, Lévi-Strauss deixa o planalto central brasileiro em direção à Índia e ao Paquistão. A comparação agora será numa perspectiva macro, entre unidades maiores, afastadas no tempo e no espaço. A visão das ruínas das antigas cidades de Mohenjo-Daro e Harappa, revelando o plano urbanístico em retícula, evoca similares modernos:

"Apraz-nos imaginar que no termo de 4 a 5 mil anos de história, um ciclo foi concluído; que a civilização urbana, industrial, burguesa, inaugurada pelas cidades dos Indus, não diferia muito, na sua inspiração mais profunda, dessa que estava destinada, após uma longa involução na crisálida européia, a atingir a plenitude do outro lado do Atlântico. Quando ainda era jovem, o mundo mais Antigo esboçava já o rosto do Novo". (Lévi-Strauss, 1981: 124)

Mas é o impacto das multidões que lhe oferece o contraste mais marcante e novas pistas para comparação: nas ruas apinhadas de Calcutá o séquito de serviçais e suas ofertas, a procissão de pedintes e suas súplicas sustentam o ininterrupto e deprimente espetáculo de uma sub–humanidade. A cidade, qualificada poucas linhas acima como "forma mais completa e requintada da civilização", aqui emerge manchada pela imundície e degradação, produzindo no antropólogo não mais o estranhamento esperado e metodologicamente controlado, mas o espanto e até o constrangimento.

"O europeu que vive na América tropical tem problemas. Observa as relações originais existentes entre o homem e o meio geográfico; e as próprias formas de vida humana oferecem-lhe, sem cessar, temas de reflexão. Mas as relações entre as pessoas não revestem formas novas; são da mesma natureza daquelas que sempre o rodearam. Pelo contrário, na Ásia meridional, parece-lhe estar além ou aquém daquilo que o homem tem direito de exigir do mundo ou do homem. A vida cotidiana parece ser um permanente repúdio da noção de relações humanas (:128)."

É desse afastamento mais extremo, contudo, que vai emergir um novo significado e é aí que vai descobrir uma inusitada manifestação de humanidade. A imagem do artesão, entretido com umas poucas ferramentas e escasso material, a exercer na própria rua o ofício de onde retira a parca subsistência para si e para os seus, fá-lo exclamar: "E, todavia, são precisas tão poucas coisas, aqui, para criar a humanidade! Pouco espaço, pouca comida, poucos utensílios, pouca alegria".

Paradoxalmente, parece haver muita alma... Alma que uma parte do Ocidente cansada do consumo e saturada pela abundância vem procurar nas palavras e exemplos de esquálidos bikhus, gurus semi despidos e toda espécie de renunciadores, na recente onda de retorno a formas de espiritualidade há muito esquecidas neste outro lado do mundo.

O exercício finalmente chega a seu termo. Lévi-Strauss considera que o problema levantado pela confrontação entre a Ásia e a América tropicais continua sendo o da multiplicação humana num espaço limitado. Diante da situação de sociedades que se tornam demasiado numerosas, alerta para um tipo de perigo: a sedução de uma saída simplista, aquela que consiste em recusar qualidade humana a uma parte da espécie.

"Aquilo que me assusta na Ásia é a imagem do nosso futuro, do qual ela constitui uma antecipação", conclui, numa sombria antevisão. Sua última imagem, contudo, é da América indígena e seu fugidio reflexo "de uma era em que a espécie se encontrava à medida do seu universo e em que se verificava permanentemente uma relação adequada entre o exercício da liberdade e os sinais desta" (Lévi-Strauss, 1981: 143).

José Guilherme Cantor Magnani
Professor do Departamento de Antropologia – USP
Retirado parte do texto do Blog História Viva

O Autor ( Antropologia )



















No último dia 31 de outubro, o mundo perdeu um de seus maiores e mais importantes pensadores contemporâneos, o antropólogo e filósofo Claude Lévi-Strauss. Às vésperas de completar 101 anos, o pensador belga, de ascendência francesa, deixa um legado fundamental para o estudo das sociedades contemporâneas.

Formado inicialmente em Filosofia, o pensador aceitou, em 1934, o convite para lecionar na recém-criada Universidade de São Paulo (USP) motivado pela proximidade de tribos indígenas. Durante a estadia, Lévi-Strauss realizou algumas expedições pela parte central do país e por outras áreas da América do Sul, onde analisou e estudou o comportamento dos chamados “primitivos” e descobriu sua paixão pela Antropologia.

Alguns anos mais tarde, radicado nos Estados Unidos, escreveu um livro-relato sobre as viagens realizadas abaixo da Linha do Equador, “Tristes Trópicos”, em que conta suas experiências com os índios, juntamente com o livre exercício de narração dos fatos que estavam guardados em sua memória.

Ainda na América do Norte, o antropólogo desenvolve uma tese que incorpora elementos da Linguística de Saussure – que passa a estudar a língua como um sistema em que todos os elementos estão interligados – e acaba por desenvolver um de seus trabalhos mais importantes: a antropologia estrutural. Utilizando-se de princípios das ciências, desenvolveu um pensamento objetivo capaz de desvendar elementos universais e atemporais do espírito humano.

Entretanto, o trabalho de Claude Lévi-Strauss não se resume apenas ao Estruturalismo, abrangendo uma linha de pesquisa bastante vasta e de suma importância para os estudos e pesquisas, não apenas da Antropologia, mas das Ciências Humanas.

Por Taysa Coelho, do "Olhar Virtual"
Retirado do Blog Traços do que Vejo de Ana Helena Ribeiro Tavares.

domingo, 1 de novembro de 2009

Relatos
















Guardam os povos memória
De grandes feitos vividos;
São os percursos da História,
Que os homens hão percorrido.

.
Quantas histórias de enredos,
Com personagens reais,
Não nos relatam segredos
Feitos paixões imortais?!

.
Sobram relatos de horror,
De violências, batalhas,
De guerras feitas ao calhas.

.
Faltam relatos de amor,
De vidas sãs, alegria,
Vividas em poesia.


VITOR CINTRA

sábado, 31 de outubro de 2009

Sobre Germânia




















O Autor:

O historiador romano Públio Cornélio Tácito, mas conhecido por Tácito, viveu no período entre 55 d.C. - 120 d.C., nasceu e morreu no sul da França, no mundo romano parte da Gália

Embora os dados a respeito de sua infância e juventude sejam muito poucos, sabe-se que Tácito casou em 78 d.C. com uma filha do general romano Caio Júlio Agrícola.

Tácito realizou ampla carreira jurídica em 81 e chegou a ser magistrado criminal. Um pouco mais tarde, em 88, devido à sua experiência tornou-se magistrado que administrava a justiça e em 97, cônsul (magistrado supremo).

Seus dotes oratórios como jurista foram várias vezes reconhecidos, mas foi como historiador que Tácito alcançou a fama. Entre os anos 100 e 117, escreveu os "Anais", onde relatou a história dos imperadores romanos desde Tibério até a morte de Nero. Nas "Histórias", redigidas entre 100 e 110, recriou o período seguinte, que vai até o reinado de Domiciano Além dessas duas obras monumentais, Tácito escreveu a "Germânia" (em que trata da vida e da cultura dos povos germânicos). Como escritor, seu estilo combinava a clareza à eloquência e concisão
Devido ao declínio da literatura latina no final do século II, e durante a anarquia militar do século III, Tácito parece ter sido negligenciado como autor, para ser redescoberto apenas na Antiguidade Tardia, quando o grego Amiano Marcelino, por exemplo, inspirou-se nele para escrever uma história, em latim, da sua própria época. No entanto, no começo da Idade Média Ocidental, sua obra voltou a cair no esquecimento, para só readquirir notoriedade durante a Renascença. Em consequência destas oscilações na sua fortuna crítica, seus textos maiores chegaram até nós muito mutilados, de forma tal que os Anais, tais como podemos lê-los hoje, contêm apenas a descrição de parte do reinado de Tibério - a descrição do reinado de Calígula estando totalmente perdida - parte do de Cláudio, e a maior parte do de Nero - estando também perdida a conclusão da obra. Quanto às Histórias, seu texto preservado contêm basicamente a narrativa da guerra civil do ano 69, que levou à ascensão de Vespasiano ao trono imperial.
Tácito tem as características usuais do historiador antigo: o gosto pela moralização - ele é um severo juiz de caráter - pelas anedotas sobre os grandes homens, o mais absoluto desinterese pela microhistória, o desprezo pelo povo comum, e o amor aos discursos inventados ou remanejados (basta comparar a sua versão do discurso de Cláudio propondo a entrada de nobres gauleses no Senado com o original, que o acaso das descobertas arqueológicas nos disponibilizou, para perceber estes remanejamentos). Sua idealização, como senador que era, da República Romana, o cega para os traços positivos do governo imperial, e é a ele que devemos grande parte da nossa idéia pré-concebida da decadência moral de Roma. Mas ele é antes de mais nada um estilista, conciso até o ponto de ser ambíguo, e com um texto simplesmente lapidar de tão econômico, que parece nos dizer o essencial sobre qualquer situação.


A Obra:

A grande obra tacitiana acerca dos usos e costumes dos antigos germanicos, foi elaborada ao tempo de Trajano, em plena guerra.
Tacito quis comparar os costumes corrompidos dos romanos com os primitivos e rudes, mas sadios, dos antigos povos germanicos.
Tacito elaborou a obra no ano 98 da nossa era, isto é d.C., temos os povos germanos como personagem principal por que naquele momento fascinavam os romanos.
No estilo de uma carta enderaçada aos romanos que estavam em Roma para mostrarem o que cercava este Império que se desfalecia pelo desenvolvimentos desses povos.
Ele expõe a situação da Germania, desde a origem da sua população, até a natureza do solo; depois descreve os costumes germanicos e a arte bélica; e finalmente estuda os diversos povos germanicos em suas principais caracteristicas.


Análise:

Religião.
“...Entoam velhos cantos (que são sua única história e todo os seus anais) ao deus Tuistão, nascido da terra, e a seu filho Mano, como raízes e fundadores de sua nação. A Mano dão-lhe três filhos, dos quais tomaram nome os ingevões, que são os mais costeiros, os herminões, que ocupam o centro, e os istevões, que são os restantes ...”
“...Entretanto a ninguém, a não ser aos sacerdotes, se consente o direito de açoitar, prender ou matar: a pena não é considerada como castigo ou execução das ordens de um comandante, mas imposta pelos deuses que, como crêem, presidem aos combates.
Por esse motivo levam ao campo de refrega certas imagens e simulacros retirando-os dos bosques sagrados...”
“...Além disso, acreditam que o sexo feminino possui algo de divinatório e de profético, pois não desprezam seus conselhos nem deixam de cumprir seus pedidos. No tempo de Vespasiano, vimos Velada ser honrada em muitos lugares como divindade. Em outro tempo veneraram Aurinia e muitas outras, mas não por adulação nem para divinizá-las...”
“...Sua divindade mais venerada é Mercúrio. Para aplacar-lhe as iras em certos dias do ano julgam lícito imolar-lhe vítimas humanas. Aplacam a Hércules e a Marte com animais rituais. Alguns dos suevos também fazem sacrifícios a Ísis. Não pude averiguar qual a causa ou a origem desse culto, embora a mesma imagem, em forma de nave libúrnia , mostra que o culto é estrangeiro. Seja como for, pensam que encerrar os deuses entre quatro paredes e representá-los sob forma humana lhes parece contrário à majestade celeste. Por esse motivo, consagram-lhes selvas e bosques, e dão nomes de deuses a esses misterioros lugares que só olham com olhos reverentes...”
“...Nenhum outro povo leva mais a sério os augures e as adivinhações. A prática de tirar as sortes é simples: dividem um ramo de árvore frutífera em pequenos pedaços que, depois de marcados com certos sinais, são lançados a esmo sobre uma veste branca. A seguir, o sacerdote da cidade, se se trata de negócio público, ou o pai de família, se se trata de assunto doméstico, após haver deprecado os deuses, erguendo os olhos ao céu, toma de três fragmentos da haste, um de cada vez, e faz a interpretação de acordo com os sinais previamente impressos. Se as decisões são contrárias aos que se esperava, naquele dia não se realizam mais consultas a respeito. Se, porém, são favoráveis, requer-se a confirmação dos auspícios. É uso ali, também, consultar-se o canto e o vôo das aves.
Contudo, constituem auspícios peculiares desta raça os presságios tomados do relinchar dos cavalos. Estes animais são sustentados à custa do erário nas próprias selvas e nos bosques sagrados. Tem o pêlo branco e jamais foram profanados nos serviços dos homens. Atrelam-se a um coche santificado e o sacerdote, ou o rei, ou o principal da cidade, os acompanham e lhes observam o nitrido e o respirar. A nenhum outro auspício dão tanto crédito como a esta. Não somente o povo mas também os nobres e os grandes e os sacerdotes vêm nestes cavalos confidentes dos deuses, quando eles, na realidade, não passam de simples ministros...”
“...Os semones se dizem os mais antigos e os mais nobres dos suevos, e confirmam isso com sua religião. Em certas épocas do ano, numa de suas florestas, consagrados pelos áugures dos seus pais e por prístinos terrores — “auguriis patrum et, priscà formidine sacram” — congregam-se os povos dessa mesma origem e, sacrificando publicamente um homem, celebram a horrível instituição de um bárbaro rito. Praticam, do mesmo modo, outra superstição em honra desse bosque sagrado: ninguém penetra ali senão algemado como símbolo de sua própria fraqueza e afirmação do poder da divindade. Se por acaso o iniciado tropeça e cai, não tem direito de se levantar e prosseguir: rola por terra. Todas essas superstições têm por objetivo mostrar que ali está o berço da nação e que ali mora o deus dominador de tudo, a quem todos os demais se sujeitam e obedecem...”
“...isto é, a Mãe-Terra, cuja interferência nos negócios humanos eles acreditam, como acreditam também na visita que ela faz a todos os povos.
Em uma ilha do oceano há um bosque chamado “casto”, dentro do qual existe um coche coberto com um véu dedicado à deusa e que só pode ser tocado pelas mãos de um sacerdote. Este sabe quando a deusa está no santuário e reverentemente acompanha o veículo tirado por uma junta de novilhos. Então há dias de alegria e de festa nos lugares em que a divindade se digna a visitar. São estes os únicos momentos que não consagram à guerra: eles guardam as armas até o instante em que o sacerdote retorna com a deusa, ao templo, farta e cansada da companhia dos mortais. Sem demora, as roupas sagradas, o carro, o véu e, se é lícito acreditar, até a própria deusa, tudo se purifica nas águas de um lago secreto. Os escravos ocupados neste ofício são afogados na própria linfa sagrada. Daí o misterioso terror, a santa ignorância do que possa ser aquilo que só vêm os destinados a perecer...”
“...No país dos naharvalos existe um bosque consagrado por antigo culto. As cerimônias são presididas por um sacerdote vestido de mulher. Acreditam os romanos que ali se adoram os deuses Castor e Pólux, sob a invocação dos Alcis. Neste sítio não se vêem imagens nem vestígios de superstição estrangeira. Veneram somente dois irmãos jovens...”

Comentário:
Vemos religiões e rituais diferentes em várias nações germânicas algumas mais próxima dos romanos e outras tão diferentes entre si. São povos que dão ênfase a suas religiões e ritos e respeitam os deuses como vontade suprema e como aquele que dirige os vencedores e derrotados. Não constroem templos pois seus deuses são divindades como eles, em que a liberdade e natureza são elementos indispensáveis.

O texto é rico em detalhes sobre costumes religiosos, sociais, políticos e econômicos. Fala também da cultura militar e do seus exércitos, dos seus cantos de guerra. Fala de Justiça, Leis, Vestuário, Traços fisiológicos, Hábitos alimentares, Geografia e Calendário.
Vale também ressaltar que Tácito nos mostra como Roma se interessava pelas guerras entre eles oferecendo a alguns até apoio para assim eles nunca se unirem, com isso havia alguns reis dependentes de alianças romanas.
Ele em todo momento demonstra como algumas nações mais próximas comercializavam entre os romanos e cada vez mais estavam entrando dentro do Império.


Resenha de Henrique Rodrigues Soares sobre Germânia de Tácito

domingo, 25 de outubro de 2009

Germânia (98d.C.) por Tácito

















I


Toda a Germânia está separada das Gálias, da Récia e da Panônia pelo Reno e Danúbio; da Sarmátia e da Dácia por alguns montes e por seus mútuos temores. O resto é circundado pelo Oceano, abrangendo golfos espaçosos e vastas ilhas, com habitantes e reis que a guerra nos fez descobrir recentemente. O Reno nasce de um despenhadeiro inacessível dos Alpes Récios, e depois de torcer um pouco para o poente desemboca no oceano setentrional. O Danúbio, espalhado de um monte pouco elevado e de acesso suave no monte Abnoba, passa por muitos povos até que se lança ao Ponto Euxino por seis bocas, a sétima some nos pântanos.

II

Creio que os germanos são naturais da própria terra e que jamais se mesclaram com a vinda e hospedagem de outros povos; pois, antigamente, todos que emigravam não iam por terra senão por mar e são raros os navios que de nosso mundo se aventuram a penetrar no Oceano imenso e, por assim dizer, oposto ao nosso. Ainda sem o perigo e o horror de um mar desconhecido, quem abandonaria a Ásia, África ou Itália para dirigir-se a essa Germânia áspera, de clima duro e de aspecto tão ingrato, não sendo para seus naturais?

Entoam velhos cantos (que são sua única história e todo os seus anais) ao deus Tuistão, nascido da terra, e a seu filho Mano, como raízes e fundadores de sua nação. A Mano dão-lhe três filhos, dos quais tomaram nome os ingevões, que são os mais costeiros, os herminões, que ocupam o centro, e os istevões, que são os restantes. Alguns, porém, baseados em tal antigüidade, aumentam o número dos filhos do deus e aludem à denominação de mares, gambrívios, suevos e vândalos, afirmando que estes são seus verdadeiros e primitivos nomes e que o de Germania é novo e foi incorporado há pouco, pois os primeiros que passaram o Reno, desalojaram os galos, e agora se chamam tungros os que se chamavam germanos, de modo que um nome que era só de uma parte do povo foi prevalecendo até o ponto em que, desta denominação, tomada a princípio pelos vencedores para inspirar terror, e adotada depois por todo o povo, chegaram todos a chamar-se germanos. Também falam que houve entre eles um Hércules, a quem cantam como herói sem par quando se dirigem ao combate.

III

Possuem também outras canções que chamam bardito, cuja entoada anima-os ao combate e anunciam à boa ou má fortuna que vai ter lugar, segundo o efeito que lhes causa o som. Mais que harmonia de vozes, aquilo parece ser a expressão de seu valor, pois procuram sobretudo produzir um som áspero e um murmúrio entrecortado e colocam o escudo à boca para que a voz ressoe e fique mais cheia. Dizem alguns que Ulisses, ao chegar a esse Oceano em sua grande e fabulosa viagem, chegou à Germânia e fundou e deu nome a Arciburgio, cidade situada às margens do Reno e que ainda está habitada. Dizem que foi encontrado um altar consagrado a Ulisses com o nome de Laertes, seu pai, e que ainda existem nos confins da Germânia e da Récia alguns monumentos e tumbas com inscrições gregas. Não tenho intenção de confirmar nem de refutar com argumentos estas notícias; cada um pode dar-lhes crédito ou não segundo sua inclinação.

IV

Sou da opinião dos que crêem que os povos da Germânia não se alteraram por casamentos com nenhuma outra nação e que são uma raça singular, genuína e semelhante só a si mesma. Portanto, possuem uma perfeita analogia de figura entre eles, ainda que tão numerosos; são de olhos azuis e selvagens, de cabelos ruivos, corpo avantajado e forte só para o ataque violento, mas não suportam com resignação os trabalhos e as fadigas, metem-lhes medo o calor e a fadiga, todavia toleram a fome e o frio por afeitos à avareza e à inclemência do clima.

V

Este, se bem que desigual em algumas regiões, é universalmente sombrio pelos muitos bosques que o formam e desagradável pelos muitos pântanos que o encharcam. Para o lado das Gálias é mais úmido e mais exposto aos ventos para o lado da Nóvica e da Panônia. É fértil em grãos porém, não em árvores frutíferas. É fecundo em rebanhos, mas de proporções reduzidas. Os bois não apresentam pela conformatura e os adereços que lhes ornam a fronte são pobres no tamanho. Amam a abastança e são estas já citadas as suas únicas e mais gratas riquezas. Não sei se foi por mal ou por bem, o certo é que os deuses lhe negaram o ouro e a prata.

Contudo, não me atreveria a assegurar não existia alguma mina desses nobres metais. Quem, porventura, já o investigou? O fato é que eles não lhes emprestam o valor que lhes dão os demais povos. Entretanto, vêm-se ali vasos de prata que costumam presentear os seus embaixadores e príncipes. Porém, não os estimam mais do que se fossem de barro. Sem embargo, os que vivem em nossas fronteiras, tendo em vista o comércio, apreciam o ouro e a prata e, por isso, selecionam algumas espécies das nossas moedas. Os do interior, atendo-se à velha usança, permutam as mercadorias com a maior simplicidade, trocando umas coisas por outras. Preferem a moeda de cunho antigo e, por esta razão, mais conhecida como serratos e bigatos e se inclinam mais pela prata do que pelo ouro, não em virtude de pontos de vista particulares, mas porque as moedas de prata é dinheiro mais cômodo para os que mercadejam objetos comuns e baratos.


Os cinco primeiros capítulos de Germânia de Tácito.

O historiador romano Públio Cornélio Tácito, mas conhecido por Tácito, viveu no período entre 55 d.C. - 120 d.C., nasceu e morreu no sul da França, no mundo romano parte da Gália.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A Civilização do Ocidente Medieval – Jacques Le Goff


O autor nasceu em janeiro de 1924, na cidade de Toulon (França), e é considerado um dos maiores medievalistas do mundo, pertence à velha escola francesa que une história à geografia, tornou-se figura chave da escola dos Annales por ter conseguido integrar à reflexão sobre o espaço e o tempo da dimensão humana. Escreveu diversos livros que se tornaram clássicos. Em 1972, sucede Fernand Braudel na École dês Hautes Études em Sciences Sociales, e nela permanece até 1977, cedendo seu lugar a François Furet.
Atualmente Le Goff dedica-se à orientação de alunos em antropologia histórica medieval, e participa do programa televisivo “Lundis de I’Histoire”, no canal France Culture.

Na introdução do livro Le Goff explica que centralizou seu trabalho na Idade Média Central, isto é, nos séculos 10 a 13 d.C. um momento de escolhas e decisivo para Europa Ocidental. Esse tempo viu nascer à cidade medieval diferente das cidades antigas, o arranque da economia monetária, as inovações tecnológicas que influenciaram o crescimento rural, o artesanato pré-industrial e a construção em larga escala.
A fabricação de relógios e bússolas marca o tempo e a distância. A Igreja exerce sua influência criando uma doutrina nova “o Purgatório”.
Um tempo de violência, fome, temor religioso e lutas sociais.

O começo fala sobre a instalação dos bárbaros, o autor fala dos grupos como Normandos, Lombardos, Visigodos e outros que começam a desestabilizar o Império Romano que começa seu fascelamento apartir do 3°séc., pois as classes mais pobres de Roma prefere o domínio dos bárbaros do que a exploração das classes dominantes romanas, então com isso a resistência é quase uma entrega voluntária a esses novos conquistadores que vivem numa guerra constante sem uma liderança máxima até o inicio do Império Huno de Atila e no séc. 7° o aparecimento do Islã criando uma reviravolta no mapa do ocidente.
É importante ressaltar que toda essa crise criada com a devastação econômica, demográfica e social dado às invasões bárbaras, houve definhamento das cidades e uma ruralização forçada com os pequenos submetidos à servidão aos grandes proprietários e um modelo de hereditariedades de profissões e encorajando aos grandes proprietários a fixar nas suas terras colonos.
A Igreja toma lugar de destaque consolidando o primeiro Papa, tomando parte nos conselheiros dos monarcas, e pregam o fim do mundo e que o homem se apegue as coisas espirituais.
No séc. 8º o Ocidente tem o seu poder unificado por Carlos Magno no Império Carolíngio, são o começo com uma organização germânica validada na fidelidade vassala, nos séc. 9º e 10° os povos do Norte entram no cenário, os Normandos nas Ilhas Britânicas e os povos Vikings que saqueiam os trajetos e algumas cidades. Mais o maior problema deste inicio de organização está no conflito interno pelo poder que é continuo e pelas rivalidades econômicas e étnicas que começam a tomar forma e ficam depois por toda história da Europa. Os séc.11º a 13º viram o crescimento populacional com firmamento da agricultura medieval, construção de pequenos diques e fundação de novas aldeias.
A Cristandade se expandiu no Norte e no Leste apesar do Cisma de 1054 em que a Igreja dividiu o Ocidente do Oriente, países que estavam caminhando para o paganismo reforçaram sua fé no Cristianismo. Começaram também as Cruzadas contra o Islamismo e também as rivalidades nacionais nascentes neste período, que acentuava a hostilidades entre Latinos e Gregos. No inicio as cruzadas eram internas trazendo de volta países como a Espanha que havia se tornado islâmica, e depois sim as cruzadas para Jerusalém numa guerra santa contra o Oriente.
A Igreja teve um papel importantíssimo no desenvolvimento do comércio, mudando a mentalidade greco-romana sobre os comerciantes que eram mal vistos pelos senhores feudais, e também serviu de motivador a abertura de seus tesouros guardados no período anterior, pois estava se vivendo escassez de recursos e falta de investimentos.
As cidades que nasceram na Europa e continuam em destaque são na suas maiorias erguidas na época medieval, às cidades antigas tirando Roma perderam seu poderio político econômico e por volta do séc.12º houve a necessidade do cunho de moedas para atender a demanda do comércio que deixou de ser à base de trocas e que mudou seu itinerário fugindo das rotas terrestres inseguras, sujeitos a todo tipo de perigos para rotas marítimas desenvolvendo assim os portos.
Com o renascimento urbano, a educação desenvolve criando os primeiros centros universitários fora da Igreja, o estudo e o ensino viram um oficio e o livro começa a ser difundido.
Nesse tempo a Igreja enfrenta mais uma crise, os Valdenses que são expulsos por serem os mais críticos, a criação da ordem de Francisco de Assis para silenciar as camadas eclesiásticas contra a riqueza do clero, tudo isso, por causa da popularidade alcançada por este grupo de padres. Outros movimentos são calados nas fogueiras e nos tribunais da Santa Inquisição, derrubando cada vez mais a imagem da Igreja e do Papa. Fora as batalhas contra reis ou regiões que aderiam ao paganismo e o islamismo.
Vale lembrar que as revoluções políticas, econômicas e religiosas tiveram seu nascedouro neste período teocêntrico, em que o homem dormia com o medo da ira divina.
No fim o mundo medieval estava deixando o feudalismo clássico e fortalecendo as monarquias, os estados, as nacionalidades, sabendo que estes povos enfrentaram a peste negra uma epidemia que assolou todo o continente europeu.

Henrique Rodrigues Soares sobre o livro do titulo da Editora EDUSC

domingo, 27 de setembro de 2009

Regulamentação da profissão de Historiador




















PROJETO DE LEI DO SENADO Nº , DE 2009
Regula o exercício da profissão de Historiador e dá
outras providências.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Esta Lei regulamenta a profissão de Historiador,
estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina
o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade profissional de
Historiador, desde que atendidas às qualificações e exigências estabelecidas
nesta Lei.
Art. 3º O exercício da profissão de Historiador, em todo o
território nacional, é privativa dos:
I – portadores de diploma de curso superior em História,
expedido por instituições regulares de ensino;
II – portadores de diploma de curso superior em História,
expedido por instituições estrangeiras e revalidado no Brasil, de acordo com a
legislação;
III – portadores de diploma de mestrado, ou doutorado, em
História, expedido por instituições regulares de ensino superior, ou por
instituições estrangeiras e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação.
Art. 4º São atribuições dos Historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de
ensino fundamental, médio e superior.
II – organização de informações para publicações, exposições e
eventos em empresas, museus, editoras, produtoras de vídeo e de CD-ROM,
ou emissoras de Televisão, sobre temas de História;
III – planejamento, organização, implantação e direção de
serviços de pesquisa histórica;
IV – assessoramento, organização, implantação e direção de
serviços de documentação e informação histórica;
V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de
documentos, para fins de preservação;
VI – elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos
e trabalhos sobre temas históricos.
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou
empregos de Historiador, é obrigatória a apresentação de diploma nos termos
do art. 3º desta Lei.
Art. 6º A entidades que prestam serviços em História manterão,
em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de
serviços, Historiadores legalmente habilitados.
Art. 7º O exercício da profissão de Historiador requer prévio
registro na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do local
onde o profissional irá atuar.
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICAÇÃO
O campo de atuação do historiador não tem se restringido mais à
sala de aula, tradicional reduto desse profissional. Sua presença é cada vez
mais requisitada não só por entidades de apoio à cultura, para desenvolver
atividades e cooperar, juntamente com profissionais de outras áreas, no
resgate e na preservação do nosso patrimônio histórico, mas também por
estabelecimentos industriais, comerciais, de serviço e de produção artística.
2
No âmbito industrial, o historiador vem trabalhando na área de
consultoria sobre produtos que foram lançados no passado, para análise de
sua trajetória e avaliação sobre a viabilidade de seu relançamento no mercado
consumidor, ou ainda, para o estudo das causas de seu sucesso ou fracasso.
Pelas suas qualificações, o historiador é imprescindível para os
estabelecimentos do setor de turismo, que contratam seus serviços para
desenvolver roteiros turísticos para visitação de locais com apelo histórico e
cultural.
Entidades públicas e privadas recorrem ao historiador para
recolherem e organizarem informações para publicação, produção de vídeo e
de CD-ROM, programas em emissoras de televisão, exposições, eventos
sobre temas de história.
Não menos valiosa é a sua colaboração nas artes, onde o
historiador faz pesquisa de época para os produtores de teatro, cinema e
televisão, quer auxiliando na elaboração de roteiros, quer dando consultoria
sobre os cenários e outros elementos da produção artística.
Num mundo onde a qualidade e a excelência de bens e serviços
vêm se sofisticando cada vez mais, os historiadores devem ter sua profissão
regulamentada, pois seu trabalho não mais comporta amadores ou
aventureiros de primeira viagem.
Assim, julgamos ter chegado o momento de regulamentarmos o
exercício da profissão de historiador que hoje congrega, em todo o país,
milhares de profissionais que reivindicam, há muito, o reconhecimento e
valorização de seu trabalho.
Por essas razões, esperamos contar com o apoio de nossos nobres
pares para a aprovação deste projeto de lei.
Sala das Sessões,
Senador PAULO PAIM

Perguntas de um trabalhador que lê
















Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão os nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída -
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China
ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bisâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária
Atlântida
Os que se afogavam gritavam por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.


O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?.
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Felipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?


Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?


Tantas histórias.
Tantas questões.


Bertolt Brecht

domingo, 20 de setembro de 2009

Mito, Memória e História - 1ª parte


Os pais da história foram os gregos. Os historiadores da Antiguidade têm muito orgulho disso, tanto que preferem não se lembrar que algumas das maiores inteligências em história antiga não se impressionaram muito com esse feito. Os cunhadores de bons mots sempre tiveram grande predleção pela história enquanto disciplina: é falsa, é perigosa, é bobagem. Os historiadores podem ignorar tranqüilamente as zombarias e dúvidas de Walpole ou Henry Ford, ou mesmo de Goethe, mas Aristóteles é outro caso, pois, afinal, criou várias ciências e dominou outras também, de um modo ou de outro — exceto história e economia. Ele não escarneceu da história, ele a rejeitou, nas famosas palavras do nono capítulo de sua Poética: "A poesia é mais filosófica e séria do que a história, pois aquela fala principalmente do universal e a história do particular. Por 'universal' entendo que determinado indivíduo dirá ou fará determinadas coisas segundo a verossimilhança ou a necessidade; esse é o propósito da poesia, acrescentar os devidos nomes às suas personagens. Por 'particular' refiro-me ao que Alcibíades fez e pelo que passou."
Não é de admirar que, dentre todos os capítulos, o nono talvez seja a maior vítima da conhecida "reclamação contra as supostas omissões de Aristóteles" na Poética. Esta foi tachada de "insuficiente" e invalidada por engenhosas exegeses, como se Aristóteles fosse um dos filósofos pré-socráticos cujas poucas frases enigmáticas que chegaram até nós podem ser ajustadas a mil teorias diferentes; ou então, como se não tratasse da história, a Poética foi polidamente desprezada. Este último argumento, porém, encerra um perigoso elemento de verdade; Aristóteles nunca se ocupou da história, nem no capítulo nove nem em qualquer outro.
Afora duas referências casuais na Poética e uma recomendação, na Retórica (1360a33-37), de que os líderes políticos deviam ampliar sua experiência através da leitura de livros sobre viagens e história, ele não torna a mencionar esse assunto em nenhum ponto da vasta obra a nós transmitida. Nada poderia ser mais significativo do que esse profundo silêncio. Indicações do passado, o passado enquanto fonte de paradigmas é uma coisa; história enquanto estudo sistemático, enquanto disciplina, é outra. Ela não é séria o bastante, não é suficientemente filosófica, nem mesmo quando comparada à poesia. Não pode ser analisada, reduzida a princípios, sistematizada. Ela simplesmente nos diz o que Alcibíades fez ou sofreu. Ela não estabelece verdades. Não tem uma função séria.
O que faltou de filosofia sobrou de retórico. É razoável supor que a única obra antiga a nós legada que pretende ser um ensaio sistemático sobre historiografia é Como Escrever História, de Luciano, escrita pouco depois de 165 d.C. Essa obra, uma mistura de regras e máximas que se tornaram lugares-comuns na instrução retória, é um trabalho inferior, superficial e essencialmente sem va-lor. Seu único ponto e interesse para nós é que, quinhentos anos depois de Aristóteles, Luciano ainda estava contrapondo a história à poesia. Nessa época, os próprios historiadores já tinham aceitado havia muito tempo a necessidade de competir com a poesia – capi-tulando e escrevendo trabalhos que Políbio rejeitou com o irônico rótulo de “história trágica”. Muitos historiadores, e, o que é crucial, até mesmo os que resistiram mais bravamente, não lograram vencer nem a indiferença dos filósofos nem o gosto dos leitores comuns.
Por que poesia? A resposta, naturalmente, é que com "poesia" Aristóteles e os outros referiam-se tanto à poesia épica, à recente poesia lírica, como a de Píndaro, quanto à tragédia, que retratavam as grandes figuras e os grandes acontecimentos do passado. Não se tratava de saber se essa poesia era ou não historicamente confiável, ou até que ponto o era, no sentido em que hoje em dia fazemos o mesmo tipo de pergunta em relação aos épicos antigos; tratava-se, isso sim, da questão mais profunda da universalidade, da verdade sobre a vida em geral. A questão, em resumo, era distinguir mito de história. Por "mito" refiro-me ao que, na acepção comum, geralmente significa "mito" e "lenda", e não aos sentidos mais metafóricos, como na expressão "o mito racista", ou às muito conhecidas extensões do termo usadas por pensadores modernos como Sorel ou Cassirer. Refiro-me a mitos como os de Prometeu, Héracles e a Guerra de Tróia.
A atmosfera na qual os pais da história começaram a trabalhar estava impregnada de mitos. Sem o mito, na verdade, eles nunca teriam conseguido iniciar seu trabalho. O passado é uma massa desconexa e incompreensível de dados incontados e incontáveis. Ele só pode tornar-se inteligível se for feita uma seleção em torno de um ou mais focos. Em todos os infindáveis debates gerados pelo wie es eigentlich gewesen (como as coisas foram realmente), de Ranke, uma primeira pergunta é frequentemente esquecida: que "coisas" merecem ou exigem consideração para se definir como elas "foram realmente"? Muito antes de alguém sequer sonhar com a história, o mito deu uma resposta. Essa era sua função, ou melhor, uma de suas funções: tornar o passado inteligível e compreensível selecionando e focalizando algumas partes dele, que, desse modo, adquiriram permanência, relevância e significado universal.
Quando Heródoto atingiu a juventude, o passado distante estava bastante vivo na consciência dos homens, mais vivo do que os séculos ou as gerações recentes: Édipo, Agamenon e Teseu eram mais reais para os atenienses do século V que qualquer figura história anterior a esse século salvo Sólon, e este foi elevado à categoria daqueles, ao ser transformado em figura mítica. As tragédias e odes corais apresentadas anualmente nas grandes festividades religiosas faziam ressurgir os heróis míticos, e estes, recuando pelas gerações de homens até chegarem aos deuses, recriavam a trama contínua da vida para o público, pois os heróis do passado, e mesmo muitos heróis do presente, tinham ascendência divina. Tudo isso era sério e verdadeiro, literalmente verdadeiro. Era a base da religião deles, por exemplo. Há uma bela passagem de Robertson Smith que resume o quadro: "Na Grécia antiga... certas coisas eram feitas num tem¬plo, e o povo concordava que deixar de fazê-las seria uma heresia. Mas se você tivesse perguntado por que elas eram feitas, provavelmente teria recebido várias explicações mutuamente contraditórias de pessoas diferentes, e ninguém teria dado a menor importância religiosa a qual delas você resolvesse adotar. Na verdade, as explicações apresentadas não teriam sido do tipo a suscitar sentimentos fortes, pois, na maioria dos casos, não passariam de histórias diferentes a respeito das circunstâncias em que o rito foi estabelecido pela primeira vez, por determinação ou exemplo direto do deus. O rito, em suma, não estava ligado a um dogma e sim a um mito."
Os gregos, todavia, amavam os épicos e as tragédias não só porque precisavam ser lembrados das origens de seus ritos, embora essa função fosse muito importante para o indivíduo — e ainda mais para a comunidade, que era arraigada a seus padroeiros e ancestrais divinos. O mito era o grande mestre dos gregos em todas as questões do espírito. Com ele, aprendiam moralidade e conduta; as virtudes da nobreza e o inestimável significado ou a ameaça da hybris; e ainda sobre raça, cultura e até mesmo política. Pois não foram Sólon e Pisístrato acusados de falsificar o texto da Ilíada, introduzindo dois versos com a finalidade de obterem autorização da obra de Homero para o confisco de Salamina aos megáricos?*
Nesse contexto, não é de surpreender que na Antiguidade a história tenha sido discutida, julgada e avaliada com base na poesia. Fundamentalmente, tratava-se de uma comparação entre duas formas de narração do passado. Porém, há uma verdade irrefutável: todos reconheciam que a tradição épica era baseada em fatos concretos. Até mesmo Tucídides, que nos diz isso tão logo acaba de se apresentar. A Guerra do Peloponeso, afirma ele, dentre todas as que a precederam, é a que mais merece ser narrada, "pois foi o maior movimento, até hoje, entre os helenos e entre uma parte do mundo bárbaro", maior, especificamente, até mesmo que a Guerra de Tróia.

M. I. Finley - Livro Uso e abuso da História

O Historiador




















Veio para ressuscitar o tempo
E escalpelar os mortos,
As liturgias e as espadas,
O espectro das fazendas submergidas,
O muro de pedra entre membros da família,
O ardido queixume das solteironas,
Os negócios de trapaças, as ilusões,
Jamais confirmadas nem desfeitas.
Veio para contar
O que não faz jus a ser glorificado
E se deposita grânulo
No poço da memória.
É importuno.
Sabe-se importuno e insiste
Rancoroso, fiel.


Carlos Drummond de Andrade