domingo, 20 de setembro de 2009

Mito, Memória e História - 1ª parte


Os pais da história foram os gregos. Os historiadores da Antiguidade têm muito orgulho disso, tanto que preferem não se lembrar que algumas das maiores inteligências em história antiga não se impressionaram muito com esse feito. Os cunhadores de bons mots sempre tiveram grande predleção pela história enquanto disciplina: é falsa, é perigosa, é bobagem. Os historiadores podem ignorar tranqüilamente as zombarias e dúvidas de Walpole ou Henry Ford, ou mesmo de Goethe, mas Aristóteles é outro caso, pois, afinal, criou várias ciências e dominou outras também, de um modo ou de outro — exceto história e economia. Ele não escarneceu da história, ele a rejeitou, nas famosas palavras do nono capítulo de sua Poética: "A poesia é mais filosófica e séria do que a história, pois aquela fala principalmente do universal e a história do particular. Por 'universal' entendo que determinado indivíduo dirá ou fará determinadas coisas segundo a verossimilhança ou a necessidade; esse é o propósito da poesia, acrescentar os devidos nomes às suas personagens. Por 'particular' refiro-me ao que Alcibíades fez e pelo que passou."
Não é de admirar que, dentre todos os capítulos, o nono talvez seja a maior vítima da conhecida "reclamação contra as supostas omissões de Aristóteles" na Poética. Esta foi tachada de "insuficiente" e invalidada por engenhosas exegeses, como se Aristóteles fosse um dos filósofos pré-socráticos cujas poucas frases enigmáticas que chegaram até nós podem ser ajustadas a mil teorias diferentes; ou então, como se não tratasse da história, a Poética foi polidamente desprezada. Este último argumento, porém, encerra um perigoso elemento de verdade; Aristóteles nunca se ocupou da história, nem no capítulo nove nem em qualquer outro.
Afora duas referências casuais na Poética e uma recomendação, na Retórica (1360a33-37), de que os líderes políticos deviam ampliar sua experiência através da leitura de livros sobre viagens e história, ele não torna a mencionar esse assunto em nenhum ponto da vasta obra a nós transmitida. Nada poderia ser mais significativo do que esse profundo silêncio. Indicações do passado, o passado enquanto fonte de paradigmas é uma coisa; história enquanto estudo sistemático, enquanto disciplina, é outra. Ela não é séria o bastante, não é suficientemente filosófica, nem mesmo quando comparada à poesia. Não pode ser analisada, reduzida a princípios, sistematizada. Ela simplesmente nos diz o que Alcibíades fez ou sofreu. Ela não estabelece verdades. Não tem uma função séria.
O que faltou de filosofia sobrou de retórico. É razoável supor que a única obra antiga a nós legada que pretende ser um ensaio sistemático sobre historiografia é Como Escrever História, de Luciano, escrita pouco depois de 165 d.C. Essa obra, uma mistura de regras e máximas que se tornaram lugares-comuns na instrução retória, é um trabalho inferior, superficial e essencialmente sem va-lor. Seu único ponto e interesse para nós é que, quinhentos anos depois de Aristóteles, Luciano ainda estava contrapondo a história à poesia. Nessa época, os próprios historiadores já tinham aceitado havia muito tempo a necessidade de competir com a poesia – capi-tulando e escrevendo trabalhos que Políbio rejeitou com o irônico rótulo de “história trágica”. Muitos historiadores, e, o que é crucial, até mesmo os que resistiram mais bravamente, não lograram vencer nem a indiferença dos filósofos nem o gosto dos leitores comuns.
Por que poesia? A resposta, naturalmente, é que com "poesia" Aristóteles e os outros referiam-se tanto à poesia épica, à recente poesia lírica, como a de Píndaro, quanto à tragédia, que retratavam as grandes figuras e os grandes acontecimentos do passado. Não se tratava de saber se essa poesia era ou não historicamente confiável, ou até que ponto o era, no sentido em que hoje em dia fazemos o mesmo tipo de pergunta em relação aos épicos antigos; tratava-se, isso sim, da questão mais profunda da universalidade, da verdade sobre a vida em geral. A questão, em resumo, era distinguir mito de história. Por "mito" refiro-me ao que, na acepção comum, geralmente significa "mito" e "lenda", e não aos sentidos mais metafóricos, como na expressão "o mito racista", ou às muito conhecidas extensões do termo usadas por pensadores modernos como Sorel ou Cassirer. Refiro-me a mitos como os de Prometeu, Héracles e a Guerra de Tróia.
A atmosfera na qual os pais da história começaram a trabalhar estava impregnada de mitos. Sem o mito, na verdade, eles nunca teriam conseguido iniciar seu trabalho. O passado é uma massa desconexa e incompreensível de dados incontados e incontáveis. Ele só pode tornar-se inteligível se for feita uma seleção em torno de um ou mais focos. Em todos os infindáveis debates gerados pelo wie es eigentlich gewesen (como as coisas foram realmente), de Ranke, uma primeira pergunta é frequentemente esquecida: que "coisas" merecem ou exigem consideração para se definir como elas "foram realmente"? Muito antes de alguém sequer sonhar com a história, o mito deu uma resposta. Essa era sua função, ou melhor, uma de suas funções: tornar o passado inteligível e compreensível selecionando e focalizando algumas partes dele, que, desse modo, adquiriram permanência, relevância e significado universal.
Quando Heródoto atingiu a juventude, o passado distante estava bastante vivo na consciência dos homens, mais vivo do que os séculos ou as gerações recentes: Édipo, Agamenon e Teseu eram mais reais para os atenienses do século V que qualquer figura história anterior a esse século salvo Sólon, e este foi elevado à categoria daqueles, ao ser transformado em figura mítica. As tragédias e odes corais apresentadas anualmente nas grandes festividades religiosas faziam ressurgir os heróis míticos, e estes, recuando pelas gerações de homens até chegarem aos deuses, recriavam a trama contínua da vida para o público, pois os heróis do passado, e mesmo muitos heróis do presente, tinham ascendência divina. Tudo isso era sério e verdadeiro, literalmente verdadeiro. Era a base da religião deles, por exemplo. Há uma bela passagem de Robertson Smith que resume o quadro: "Na Grécia antiga... certas coisas eram feitas num tem¬plo, e o povo concordava que deixar de fazê-las seria uma heresia. Mas se você tivesse perguntado por que elas eram feitas, provavelmente teria recebido várias explicações mutuamente contraditórias de pessoas diferentes, e ninguém teria dado a menor importância religiosa a qual delas você resolvesse adotar. Na verdade, as explicações apresentadas não teriam sido do tipo a suscitar sentimentos fortes, pois, na maioria dos casos, não passariam de histórias diferentes a respeito das circunstâncias em que o rito foi estabelecido pela primeira vez, por determinação ou exemplo direto do deus. O rito, em suma, não estava ligado a um dogma e sim a um mito."
Os gregos, todavia, amavam os épicos e as tragédias não só porque precisavam ser lembrados das origens de seus ritos, embora essa função fosse muito importante para o indivíduo — e ainda mais para a comunidade, que era arraigada a seus padroeiros e ancestrais divinos. O mito era o grande mestre dos gregos em todas as questões do espírito. Com ele, aprendiam moralidade e conduta; as virtudes da nobreza e o inestimável significado ou a ameaça da hybris; e ainda sobre raça, cultura e até mesmo política. Pois não foram Sólon e Pisístrato acusados de falsificar o texto da Ilíada, introduzindo dois versos com a finalidade de obterem autorização da obra de Homero para o confisco de Salamina aos megáricos?*
Nesse contexto, não é de surpreender que na Antiguidade a história tenha sido discutida, julgada e avaliada com base na poesia. Fundamentalmente, tratava-se de uma comparação entre duas formas de narração do passado. Porém, há uma verdade irrefutável: todos reconheciam que a tradição épica era baseada em fatos concretos. Até mesmo Tucídides, que nos diz isso tão logo acaba de se apresentar. A Guerra do Peloponeso, afirma ele, dentre todas as que a precederam, é a que mais merece ser narrada, "pois foi o maior movimento, até hoje, entre os helenos e entre uma parte do mundo bárbaro", maior, especificamente, até mesmo que a Guerra de Tróia.

M. I. Finley - Livro Uso e abuso da História

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