sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Mito, Memória e História - parte 2


















Tucídides sustenta seu ponto de vista demoradamente, e entre as personagens "históricas" que ele apresenta em sua introdução aparecem Heleno, filho de Deucalião (o ancestral de cujo nome se originou o dos helenos), Minos, rei de Creta, e Agamenon e Pélops. Os detalhes são vagos, afirma ele, tanto sobre o passado remoto quanto sobre o período que antecedeu a Guerra do Peloponeso — um ponto em comum bastante significativo —, mas os esboços gerais são claros e confiáveis. Homero exagerou, pois, sendo poeta, empregou adequadamente a licença poética, e Tucídides, ao contrário da maioria vulgar, reconheceu isso em sua introdução. O próprio Tucídides alerta que em seu trabalho não atenderá aos anseios por exageros e adornos poéticos da parte dos leitores; seu relato dos fatos será objetivo. Mas nem Tucídides, Platão, Aristóteles ou qualquer outro chegaram a mostrar-se totalmente céticos quanto ao que um escritor moderno poderia chamar de "semente histórica do épico", e certamente não o rejeitaram por completo.
Contudo, o que quer que tenha sido, o épico não era história, e sim uma narrativa, detalhada e precisa, com descrições minuciosas de guerras, viagens marítimas, banquetes, funerais e sacrifícios, todos muito reais e vívidos; ele podia conter inclusive algumas sementes encobertas do fato histórico — mas não era história. Como todo mito, era atemporal. As datas e um escalonamento coerente de datas são tão essenciais para a história quanto a medição exata o é para a física. O mito também sugeria fatos concretos, mas estes eram completamente isolados: não tinham ligação nem com os acontecimentos anteriores nem com os posteriores. A Ilíada começa com a cólera de Aquiles por causa de uma afronta à sua honra e termina com a morte de Heitor. A Odisséia, como cenário para as viagens de Ulisses, menciona o término da Guerra de Tróia e o retorno de alguns dos heróis. Mas tudo isso acontecia no estilo "era uma vez", surgindo do nada(o rapto de Helena é meramente outro fato isolado, totalmente a-histórico sem qualquer sentido significativo) e levando a nada. Mesmo dentro da narrativa, o relato é fundamentalmente atemporal, apesar de muitos números (de dias ou anos) serem determinados. "Esses números, em sua maioria, referem-se tipicamente a todas quantidades possíveis, e em geral não estão ligados entre si; não servem de base para cálculos ou sincronizações. Simplesmente indicam, de modo amplo, uma magnitude ou escala, e em sua pseudoprecisão estilizada simbolizam uma longa duração. Na realidade, não há interesse na cronologia, quer relativa quer absoluta." Muitos anos depois, os autores de tragédias mantiveram a mesma indiferença: Édipo, Ifigênia, Orestes, todos fizeram ou passaram por coisas que se acreditava serem fatos históricos, mas os eventos flutuavam vagamente no passado distante, desvinculados, em termos de tempo ou padrão, de outros acontecimentos.
A atemporalidade reflete-se também nas características individuais. A morte é um dos principais tópicos de suas vidas (bem como a honra, da qual é inseparável), e o destino é freqüentemente o mais importante poder propulsor. Nesse sentido eles vivem no tempo, e tão somente nesse sentido. A nenhum leitor da Odisséia deve ter escapado que quando o herói volta, depois de vinte anos, ele e Penélope são exatamente o que haviam sido meia geração antes. Mas Samuel Butler certamente não se deu conta disso, quando escreveu: "Não há nenhum caso de amor na Odisséia, exceto a volta de um homem casado, calvo e idoso, para a esposa idosa e o filho adulto, depois de uma ausência de vinte anos, e furioso por terem-lhe rou¬bado tanto dinheiro nesse meio-tempo. Dificilmente, porém, poderíamos chamar isso de caso de amor; quando muito, não passa de domesticidade."
O poeta não diz que Ulisses estava calvo e velho; Butler é quem o diz, e, provavelmente, foi isso que ele chamou de ler os versos homéricos "com inteligência": lendo-lhes as "entrelinhas". Um Ulisses que não estivesse calvo e velho depois de vinte anos seria contrário ao senso comum e à "inteligência". O erro - e Samuel Butler é apenas um bode expiatório para uma prática freqüente - está em aplicar o pensamento histórico moderno, à guisa de senso comum, a um relato mítico, a-histórico. Esposas e maridos históricos envelhecem, mas a verdade é que nem Ulisses nem Penélope mudaram em nada; não evoluíram nem degeneraram, assim como nenhuma outra personagem do poema épico. Tais homens e mulheres não podem ser personagens da história; são excessivamente simples, fechados em si mesmos, rígidos e estáveis, excessivamente desvinculados de seus contextos. São atemporais como o próprio poema.
Talvez o exemplo mais decisivo não venha de Homero, mas de Hesíodo, que viveu aproximadamente na mesma época*. A introdução de Os Trabalhos e os Dias contém um dos mais famosos relatos primitivistas, a narrativa do declínio do homem da idade de ouro do passado em vários estágios, cada um simbolizado por outro metal: ao ouro sucede-se a prata, em seguida o bronze ou o cobre, e finalmente o ferro (a era presente). Mas a visão de Hesíodo não é de degeneração progressiva, de evolução ao contrário. Cada raça humana (Hesíodo fala de raças, genê, não de idades) não evolui até
a seguinte; ela é destruída e substituída por uma nova criação. Nenhuma das raças existe nem no tempo nem no espaço. As raças humanas são atemporais como a Guerra de Tróia: tanto em relação ao futuro quanto ao passado. E assim Hesíodo pode lamentar: "eu não queria estar entre os homens da quinta geração, e sim ter morrido antes ou nascido depois" (versos 174-75)12.
É possível que o mito das quatro idades ou raças do metal tenha se originado no Oriente, sendo helenizado por Hesíodo. Mas houve também uma quinta idade ou raça, certamente grega do começo ao fim: a idade dos heróis inseridos entre o bronze e o ferro. "Mas quando a terra cobriu também essa geração [bronze], Zeus, o filho de Cronos, criou mais outra, a quarta, sobre a terra fecunda, que era mais nobre e justa, uma raça semelhante a deus, de homens-heróis que são chamados de semideuses, a raça que antecedeu a nossa, por todo o vasto mundo." Essa colcha de retalhos era inevitável, pois os mitos dos heróis estavam tão arraigados na mente e eram tão indispensáveis que não podiam ser deixados de lado. A colcha de retalhos é a regra no mito, e não causa problemas. Só os que têm uma mente voltada para a história é que vêem os pontos rústicos e as costuras defeituosas, e sentem-se incomodados com isso, como é evidente em He-ródoto. Mas Hesíodo não tinha uma mente voltada para a história. De um lado estavam as quatro raças e, de outro, a raça dos heróis. Estes eram os dados e a tarefa do poeta consistia em coligi-los. Ele o fez do modo mais fácil possível, graças à total ausência do elemento tempo. Não havia problemas cronológicos, nem datas para ser sincronizadas, nem evolução para ser acompanhada ou explicada. A raça de heróis não tinha começo na história: ela simplesmente foi feita por Zeus. E também não tinha fim, não sofrera transição para o estágio seguinte, o contemporâneo. Alguns dos heróis foram destruídos diante dos portões de Tebas e na Guerra de Tróia. "Mas, para os outros, o pai Zeus, filho de Cronos, deu vida e um lar separados dos homens, obrigando-os a morar nos confins do mundo. E, imunes à tristeza, vivem eles nas ilhas dos bem-aventurados ao longo da costa do profundo e revolto oceano."
Existe, naturalmente, um sentido no qual o mito das idades não é propriamente um mito. Ele é abstraio demais.


Trecho do livro Uso e Abuso da História de M. I. Finley

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Sobre nossa Independência - Parte 5


















A chegada da Corte.
Com a pressão de uma invasão francesa as portas de Portugal, a Corte se sente obrigada para uma transferência para o Brasil, com proteção dos aliados ingleses.
Então em 1808 começa a se construir a condição favorável para futura Independência com as primeiras atitudes do príncipe regente Dom João VI, em abrir os portos a todas as nações, fazendo tratados comerciais com ingleses que depois se tornaria um dos pilares do interesse britânico em intervir afavor dos brasileiros.
Dom João VI trouxe uma infra-estrutura, e construindo o que faltava para que a cidade do Rio de Janeiro estivesse em condições de ser capital administrativa da realeza portuguesa, como relata o historiador Ciro Flamarion Cardoso:

“Um verdadeiro aparelho de estado e um corpo diplomático instalaram-se no Rio. E em 16 de dezembro de 1815, o Brasil passou à categoria de Reino Unido ao de Portugal e Algarve. Assim, a ex-capital colonial tornara-se sede de ministérios, secretarias, tribunais, repartições públicas, de um Conselho de Estado, outro de Fazenda etc. E foi no Rio de Janeiro que, morta a rainha, o até então príncipe-regente foi aclamado, em 1818, como rei João VI.” (História Geral do Brasil – pág.124).

O Rio de Janeiro foi a cidade que experimentou as maiores transformações, sua população teve um aumento de quase 50%, fora as manufaturas até por causa do alto crescimento demográfico. Houve também na Bahia, o primeiro estabelecimento de curso superior, teve inicio a exploração de ferro em Minas Gerais e em São Paulo.
Apesar de tudo isso havia um grande descontentamento com privilégios que portugueses recebiam em todas suas atividades, tanto que nesse período vemos nascer a Revolução Pernambucana da qual já nos referimos.

“(...) O afluxo de comerciantes e funcionários lusos foi intenso nos anos que se seguiram à instalação do governo lusitano no Rio de Janeiro, cidade que começou a ser percebida como “portuguesa” por excelência pelos habitantes de outras partes do Brasil. A xenofobia esteve presente na revolução que começou no Recife em 1817, chefiada de inicio por um comerciante liberal e logo contando com o apoio de militares,
funcionários, membros do clero e proprietários.” (História Geral do Brasil – pág. 125).


Henrique Rodrigues Soares